terça-feira, 9 de julho de 2013

Guimarães 1853: a construção de uma cidade (fim)

Durante as décadas de 50, 60 e 70 do século XIX, são postos em marcha muitos dos empreendimentos que modificaram Guimarães, alguns dos quais só ganhariam forma na década de 80 do século XIX (mais particularmente no ano de 1884). Mas para além dos “melhoramentos materiais” que marcaram e ainda marcam a paisagem urbana vimaranense, houve também a consolidação de outros aspectos relativamente comuns na vida de qualquer cidade. Refiro-me aos pontos de encontro dos homens do comércio e da i
Vista de Guimarães (1849-1873) Fonte: wikipedia
ndústria, das tertúlias culturais, das celebrações religiosas ou profanas (foi célebre o Carnaval neste período), enfim, das diversas rotinas criadas por uma vida finalmente normal, após meio século de guerra...É até possível encontrar referências mais concretas, ainda que em vários textos dispersos, aos pontos de encontro dos vimaranenses da segunda metade do século XIX, cito apenas alguns, para exemplificar: Café Fernandes (Porta da Vila), Livraria/Tabacaria Lemos (Porta da Vila), Casa Feliz (do Comendador Miranda, no Toural), Casa Castro Sampaio (do Visconde de Sendelo, Toural), Café do Vago-Mestre (Toural), Casa Havaneza (Toural), Casa de Luiz Gonçalves Basto (Toural/Alameda), Casa Braga (Rua Paio Galvão), entre outras.

Não será difícil imaginar os passeios ao domingo no jardim do Toural, com a música do Regimento 20 a tocar, as idas das famílias ao Teatro Afonso Henriques (fundado em 1855), e as feiras e os mercados, animadas por um período económico pujante, a encherem Guimarães de gente nos dias em que se realizavam. No plano político, fundamental para a vida da cidade, as querelas entre facções opostas a enchiam as páginas dos jornais, com questões locais e nacionais. Contudo, um raro espírito de união dessas várias facções iria surgir nos momentos essenciais para a vida da cidade. Assim o demonstram  as direcções de várias associações e instituições vimaranenses, compostas de pessoas dos mais variados quadrantes políticos. É aliás esse espírito de união, ou espírito “de antes quebrar que torcer” (para citar uma frase celebrizada no conflito que opôs Braga a Guimarães em 1886), que parece definir um pouco a própria índole da cidade de Guimarães e das suas gentes nas décadas que se seguiram.
Naturalmente que essa marca identitária do povo vimaranense já existia (basta recordar alguns episódios históricos, nomeadamente da Guerra Peninsular para o perceber). Contudo uma duríssima Guerra Civil tinha dividido os vimaranenses e só na segunda metade do século XIX é que se volta a perceber – digo perceber porque nada disto é mensurável – esse espírito de união.


Da década de 50 às décadas de 80/90 do século XIX, Guimarães dotou-se de infra-estruturas, de projectos e de massa crítica que a caracterizariam como cidade nos anos seguintes. Assumindo desde já a natureza subjectiva das minhas escolhas, permito-me referir algumas que ilustram aquilo que acabei de dizer: calcetamento das ruas (década de 40 e seguintes), iluminação pública (1844), Visita de D. Maria II e elevação a Cidade (1852/1853), Teatro D. Afonso Henriques (1855), Lar de Santa Estefânia (1858), Assembleia Vimaranense (década de 60), Praça do Mercado (1860), Associação Comercial (1865), Comissão de Melhoramentos (1869), criação do Passeio Público (década de 70), Banco de Guimarães e Banco Comercial de Guimarães (1873 e 1875), Termas de Vizela (1873), Termas das Taipas (1875), Bombeiros de Guimarães (1877), Cemitério Público (1879), visita de intelectuais estrangeiros à Citânia de Briteiros (1880), fundação da Sociedade Martins Sarmento (1881), Publicação de Guimarães Apontamentos Para a Sua História (Padre Caldas, 1881), Revista de Guimarães (1884), Comércio de Guimarães (1884 – cito-o como referência de uma imprensa viva cuja tradição remonta a 1822), Exposição Industrial (1884), Escola Industrial (1884), Caminho de Ferro/Comboio em Guimarães (1884), Fábrica do Castanheiro (85/86, símbolo da indústria têxtil), melhoramentos da Penha (1886), estátua D. Afonso Henriques (1887) e as Avenidas Afonso Henriques e D. João IV (início da década 90).

Nascia assim uma cidade nova, a continuar a vila velha. Cidade feita não só do granito que deu vida a muitas das novas artérias e monumentos, mas também feita dos grandes momentos e das pequenas coisas, bem como de todos os vimaranenses que nelas tomaram parte.

Foi esta paisagem urbana, humana, simbólica e cultural que Guimarães nos legou no século XIX. Uma vila feita cidade, cercada ainda pelo ar das aldeias e dos montes que a circundam, um ar “que sabe a bravio” (nas palavras de Raúl Brandão) e que ainda hoje se sente na cidade de Guimarães.

Foi assim que Guimarães se fez cidade no século XIX, após a visita de uma Rainha, preparando-se para entrar no século XX pronta para outros progressos. Mas essa é uma outra história…


Guimarães, 1853: a construção de uma cidade (II)

Mas, afinal, a que Guimarães chega então D. Maria II?

Podemos dizer sem receio de errar que chega a uma vila que valia mais pela sua antiguidade e monumentalidade (pensemos nos casos do Castelo, ruínas dos Paços dos Duques e Largo da Oliveira) do que propriamente por aquilo que, na época, se considerava serem os atributos de uma cidade moderna. É claro que D. Maria II reconhece as qualidades inerentes à antiguidade e importância de Guimarães e as qualidades do seu povo (das quais destaca a importância do comércio e da indústria). E são esses alguns dos motivos que evoca para fazer de Guimarães uma cidade. Na Carta em concede a Guimarães o título de
Via vicinal de Pinto de Menezes (carregar para ampliar)
cidade afirma fazê-lo, e passo a citar: “Attendendo que a mesma Villa desfructa a primazia de ser uma das mais populosas da provincia do Minho, e a mais florescente em diversos ramos de industria, à qual são devidas a sua opulência e prosperidade, e as suas relações commerciais dentro e fóra do Paiz; Attendendo a que a famosa Villa de Guimarães, sempre Honrada por Meus Augustos Predecessores com especiaies privilegios, possue as condições e elementos necessarios para sustentar a dignidade e cathegoria de Cidade”.
Dona Maria II deixa a Guimarães uma “distinção” que permitiria que a vila se fizesse cidade, ganhando mais importância na região e um maior poder reivindicativo junto do poder central. E é já com o estatuto de cidade que Guimarães começa a trilhar um longo caminho.
Na década de 50 do século XIX surge em Portugal um período de grande investimento público e de aposta nos “melhoramentos materiais” que ficou conhecido como “Regeneração” e que se prolongou sensivelmente até 1868, muito embora algumas das suas sementes viessem a dar frutos em datas posteriores. Este período é também particularmente importante para Guimarães, especialmente no plano urbanístico, pois é nesta época que a Câmara, presidida pelo Comendador Alves Carneiro, decide fazer o levantamento da planta da cidade, encarregando para o efeito o Eng. Almeida Ribeiro. As propostas de Almeida Ribeiro viriam a ter um impacto enorme na cidade. É da sua autoria o projecto de abertura da Rua de Gil Vicente, entre muitos outros relativos a arruamentos, bem como propostas para a criação de um Passeio Público, bairro para a classe pobre, etc.
Na sequência do trabalho iniciado por Almeida Ribeiro, é formada uma “Comissão de Melhoramentos” que viria a ter uma enorme influência em muito do que de mais importante se fez em Guimarães no século XIX. De acordo com os estudos da Dra. Maria José QueirósMeireles e do Dr. Mário Gonçalves Fernandes, a Comissão foi instalada pelo Presidente da Câmara, Visconde de Santa Luzia, e contava com diversos elementos dos quais se destacam Martins Sarmento, Barão de Pombeiro, Luis Cardoso Martins de Macedo (mais tarde agraciado com o título de Conde de Margaride), Avelino da Silva Guimarães (vice-presidente da Câmara) e o jovem Eng. José Taveira de Carvalho Pinto de Menezes. Estes últimos, Silva Guimarães e Pinto de Menezes, foram os principais obreiros da Comissão. Na prática a Comissão dedicou-se a resolver os problemas do abastecimento público de águas e a arranjar e a abrir arruamentos. Mas, por iniciativa de Avelino da Silva Guimarães e por Pinto de Menezes, foi também discutida a realização de uma exposição Industrial e Agrícola (discussão que teve influência na Exposição Industrial de 1884), a criação de lavadouros e públicos, um plano de iluminação a gás, etc.
Da cabeça de Pinto de Menezes surge ainda um dos projectos mais fascinantes, pela sua visão de futuro, jamais elaborados em Guimarães: a abertura de uma estrada vicinal, ligando em volta dos subúrbios da cidade as estradas de Fafe, Braga, SantoTirso e Famalicão, ligando, depois, a cidade a esta estrada vicinal. O traçado (desenhado em 1869) corresponde sensivelmente à actual via rápida (ver figura).

Mas as ideias desta Comissão de Melhoramentos não se ficavam por aqui. Avelino da Silva Guimarães faria, por esta altura, uma proposta que visava criar uma biblioteca pública, científica e literária, mas também industrial e agrícola (como bem refere o Dr. Mário Gonçalves Fernandes, a proposta viria a concretizar-se 12 anos depois, com a criação da Sociedade Martins Sarmento, instituição de que Avelino da Silva Guimarães foi fundador e Presidente).

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Guimarães, 1853: a construção de uma cidade


Quando a 15 de Maio de 1852 a Rainha D. Maria II e seu marido entraram em Guimarães, entravam numa Vila que ambicionava ser cidade. Os Reis entraram em Guimarães às 9h da manhã. Foram saudados por inúmero povo e pelas autoridades num Toural que se tinha engalanado para os receber. Nas Portas da Vila, o Presidente da Câmara, João Machado Pinheiro (mais tarde Visconde de Pindela), recita um brilhante discurso e entrega as Chaves da Vila à Rainha. O trajecto dos Reis percorre toda a vila, detêm-se nas principais instituições e monumentos. São saudados pelas notabilidades locais e pelo povo que se apinha nas ruas. Dirigem-se finalmente ao Palácio de Vila Flor, onde se hospedam e são principescamente recebidos por Nicolau de Arrochela (futuro Conde de Arrochela).
Chaves da Cidade de Guimarães (fonte: SMS)
Guimarães não mais esqueceria esta visita. E numa rua, a Rua da Rainha, é guardada ainda essa memória.
Nove meses depois, por decreto, Guimarães era elevada à categoria de cidade. A 22 de Junho era lavrada a Carta que solenizava o decreto. Estávamos finalmente na cidade de Guimarães.
Hoje, 160 anos passados após o sucedido, é tempo de perguntarmos a que Guimarães chegou D. Maria II em 1852? E que transformações ocorreram a partir de 1853? Afinal, quando e como se construiu a cidade de Guimarães?
A antiquíssima vila medieval de Guimarães, resultou, como é sabido, da junção de duas vilas – chamemos-lhe assim – , que veio unir a parte alta à parte baixa de Guimarães (“duas Vilas um só Povo” na feliz expressão da Professora Conceição Falcão Ferreira). Depois, com o passar dos séculos, Guimarães libertou-se dos grilhões que a prendiam, crescendo para fora de muros. Foram surgindo modificações urbanísticas acompanhadas de novos pólos culturais e urbanos. Ainda no século XV/XVI, é construída a Torre dos Pinheiros na Igreja de Nossa Senhora da Oliveira, edificação que engrandece a Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, que era, provavelmente, o maior senhorio (detentor de terras) da região. Já no século XVI, nos arredores de Guimarães, surge a Universidade da Costa, que forma gente relevante para a Vila. De volta ao coração da Vila, na Praça da Oliveira, vemos erguerem-se, também no século XVI, os Paços do Concelho. Depois, na transição do século XVI para o século XVII começa a ganhar importância o terreiro do Toural, palco de feiras e das mais variadas festividades. Ao mesmo tempo vão surgindo vários arruamentos estreitos e desalinhados e algumas zonas habitacionais dispersas, próximas do antigo núcleo urbano. Novamente no Toural surge, já nos finais do século XVIII, um enorme edifício, de feição regular, a enobrecer a então vila de Guimarães.
Ainda que lentamente Guimarães crescia, atravessando os séculos. Contudo, Guimarães chegava ao século XIX ainda Vila e não Cidade.

Seria certamente importante definir o que é uma cidade, ou o que faz uma cidade, para tentar identificar os elementos, materiais e imateriais, que, conjugados, oferecem um resultado para esta complexa equação. Contudo, a modéstia e a falta de tempo e de espaço, impedem-me de o tentar fazer. Creio até que, mesmo tentando, não seria capaz. A análise implicaria uma abordagem histórica, sociológica, antropológica, cultural, urbanística, geográfica, arquitectónica que não se coaduna com a natureza desta comunicação.
Por isso em vez de perguntar “como se faz uma cidade?”, pergunta algo abstracta como foi demonstrado anteriormente, é preferível perguntar “como se fez esta cidade de Guimarães”. Pergunta complexa, sem dúvida, para a qual mesmo não tendo uma resposta definitiva, sinto ser capaz de responder ou de, pelo menos, tentar.


É no século XIX, mais precisamente a partir de 1834, com o fim da Guerra Civil, que Guimarães começa a dar os primeiros passos no sentido de uma cidade mais parecida com a que conhecemos hoje, ou com a vila transformada em cidade por D. Maria II em 1852.

Com a vitória dos liberais na Guerra Civil, as ideias “liberais” (ou do liberalismo) começam a ser postas em prática um pouco por todo o país. A interferir directamente na vida local, assiste-se uma reorganização administrativa de todo o território nacional (mais centralizadora) e a novos critérios para a eleição do poder local (mais democráticos). De uma forma menos directa, ou menos dependente do poder central, assiste-se a um vincar na opinião pública de um conjunto de ideias ligadas a uma nova ideia de sociedade, mais preocupada com a instrução pública, com a cultura, com a saúde e com o desenvolvimento económico.

Essas novas ideias de desenvolvimento da sociedade chegam a Guimarães logo no fim da Guerra Civil, em Outubro de 1835, através da constituição da tristemente célebre Sociedade Patriótica Vimaranense (imortalizada por numa das suas sessões se ter pretendido demolir uma das torres do Castelo de Guimarães para calcetar as ruas, iniciativa que foi chumbada por 15 votos contra e 4 a favor). Contudo, para além da infeliz iniciativa que a celebrizou, na Sociedade Patriótica Vimaranense surgiram várias “Comissões” (assim designadas em documentos da época) onde as novas ideias do liberalismo ganhavam forma e procuravam afirmar-se na sociedade vimaranense de então. A par de uma comissão de “Festas”, outra “Administrativa” e outra ainda de “Contas”, estas relacionadas apenas com as actividades da SPV, surgiram também as comissões de “Instrução” (que incluía o ensino e a cultura), “Agricultura”, “Salubridade” e “Comércio”. Estas últimas, ainda que muito lentamente, foram semeando algumas das ideias que mudariam e construiriam Guimarães ao longo do século XIX.
Podemos referir que das ideias defendidas pelos membros da SPV, surgem, em certa medida, as bases que permitiram lançar os alicerces da Associação Comercial (fundada em 1865 por António Espírito Santo “O Alemão”, membro da SPV), das diversas demolições que permitiram o alargamento e calcetamento das artérias urbanas, da edificação de novos teatros, das instituições ligadas à instrução (e ao ensino), do cemitério público (salubridade), entre outras. Contudo, nenhum destes progressos foi posto em prática através da SPV que se extinguiria em 1839. Mas as ideias ficaram, à espera de melhores dias…

É de notar que a primeira metade do século XIX foi um período de grande instabilidade política e social. À Guerra Civil que opôs Miguelistas a Liberais, seguiu-se o conturbado período do Setembrismo (1836 a 1842), a que se seguiu a Maria da Fonte (em 1846). Naturalmente esta instabilidade afectou Guimarães e impediu que muitas das ideias de progresso e desenvolvimento defendidas na época ganhassem forma. A título de exemplo, pode dizer-se que durante o Setembrismo nem o problema do calcetamento das ruas estava resolvido, como atestam uns versos da época relativos esse problema em Guimarães: “As calçadas continuam/no desmazelo sabido/ e o dinheiro anda comido!”.

Contudo, na década de 40 do século XIX, Guimarães conheceu alguns progressos, dos quais merecem destaque o serviço de correios (1841), a iluminação pública (1844), ou os projectos e melhoramentos das estradas de Guimarães/Santo Tirso e de Guimarães/Braga (1845).
Já na década de 50, com o país pacificado, começam a pôr-se em prática algumas das melhorias pensadas nas décadas anteriores. Antes de 1852, data da visita de D. Maria II a Guimarães, é de referir que uma Comissão de Amigos do Castelo propôs efectuar alguns melhoramentos naquele que era (e ainda hoje é) considerado o mais importante monumento de Guimarães, pela sua antiguidade e pela sua enorme carga simbólica.


Mas, afinal, a que Guimarães chega então D. Maria II?
(continua) 

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

A primeira referência documental às "Nicolinas"


A primeira referência documental às “Nicolinas”[1]

Até agora, as referências mais antigas ao culto a S. Nicolau pelos estudantes em Guimarães são, sem margem para dúvidas, os pedidos efectuados à Colegiada em 1661 e 1662 por um conjunto de padres e licenciados (pertencentes à confraria de S. Nicolau) que pretendiam insituir uma capela dedicada ao culto do Santo.
Contudo, uma recente descoberta do historiador e investigador vimaranense Rui Faria, faz com que as “Nicolinas” recuem mais uns anos, mais precisamente para 1645 como se poderá constatar através da leitura do seguinte documento Notarial:
“Ano de 1646 a 22 de Março
Perdão de Maria Cardosa a Tomé Pereira
Em nome de Deus ámen saibam qoantos este estrom[en]to de perdão / ou como melhor em d[i]r[ei]to aja lugar virem que no ano do na/ssim[en]to de nosso s.or IHJ Cristo de mill seissentos e corenta e seis / annos aos vinte e dous dias do mês de Março do dito anno / nesta villa de G[uimara]es na Rua da Sap[a]t[ei]ra della casas de morada de mim / publico t[abel]am paresseo M[ari]a Cardosa moradora atrás do Muro / do arrabalde desta villa pessoa reconhesida de mim t[abeli]am e por /ella foi dito em minha prezensa e das test[emunh]as abaixo assinadas /que o juiz de fora desta villa o lecenseado André de Gouveia Mendan/ha a mandara noteficar paresesse diante elle por lhe haverem / feito quixa que hos estudantes na noite de São Nicolau do ano / próximo passado de seissentos e corenta e sinco anos lhe aviam arombado / hum postigo da sua porta e se fizera justiça de que o dito juiz / tirara devassa e nella saira[m] pronunsiados António P[erei]ra estudante he Thomé P[erei]ra filho de Ant[óni]o P[erei]ra mercador outrossi estudante / he porque elles não foram os que chegara[m] a sua porta nem lhe fizeraõ agravo algum nem elles nem outra pessoa alguma nem / aronbara[m] nem abalroara[m] porta algu[m]a, he por estar em coresma / por descargo de sua consiensia declarava que os sobreditos fora[m] injustam[en]te pronunsiados e que de sua livre vontade / sorprema nem constrangimento de pessoa algu[m]a lhe perdoava / toda a cullpa emenda e satisfação sível e crime que pello dito caso lhe havia a justiça emposto e delles não / queria mais cousa alguma, e pedia às justiças de sua mag[esta]de que mais contra elles não prosedessem avante porquanto / por este lhe havia perdoado livremente e assim o disse e outor/gou e mandou ser feito nesta nota este instrum[en]to de perdão / e delles dar os treslados nesessários e que comprirem a / que tudo eu t[abeli]am como pessoa públiqua estepulante e assei/tante todo estipulei em nome da pessoa ou pessoas / a que o aseitaram tocar possa não presentes p.a assim mai pedi os / treslados nesessários e que comprirem a que foram testem.has / Jherónimo de Oliveira m.or nesta vila a que ella M.a cardosa rogou / que assinasse por ella e assinou sendo mais test[emunh]as presentes / Ant[óni]o da Rocha e Belchior Mendes morador nesta villa que / todos aqui assinaram Miguel Dias t[abeli]am o escrevi
Assino a seu rogo Jerónimo de Oliveira + Benchior Mendes + António da Rocha”

O documento refere então que na noite de São Nicolau de 1645, António Pereira e Tomé Pereira,  ambos estudantes, teriam arrombado um postigo da casa de Maria Cardosa, tendo esta, algum tempo depois, apresentado uma queixa que, mais tarde, viria a retirar.
O relato extraído do notarial não só demonstra que em 1645 existia algum tipo de culto prestado a S. Nicolau pelos estudantes vimaranenses, mas também dá-nos a conhecer que já nessa altura as festividades se revestiam de um certo caractér transgressor, que perdurou ao logo dos séculos e que ainda hoje se mantém.

Fontes documentais: Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, Arquivo Notarial, Cota: N – 49 fl. 132 v.
O documento citado foi-me cedido pelo Rui Faria a quem muito agradeço.



[1] O termo “Nicolinas”, surgido no século XX,  é aqui usado no título como sinónimo dos festejos e folias dos estudantes praticados no dia de S. Nicolau ou em sua homenagem.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

A lenda que inspirou o filme...


Nascido a 1 de Janeiro de 1812 na Travessa de Trás-dos- Oleiros (actual travessa de Camões), Domingos Florentino da Silva foi o sétimo de nove filhos de Manuel Domingues e de Ana Maria da Silva. O seu pai, natural de Vila Nova de Gaia, veio novo para Guimarães onde casou com Ana Maria da Silva, natural de Mesão Frio e filha de lavradores proprietários. Manuel Domingues foi mestre-pedreiro, taberneiro e proprietário de alguma monta em Guimarães. Decidido a fazer dos seus filhos mais do que ele próprio tinha sido, enviou os dois filhos mais velhos para o Brasil, casou bem a sua única filha que chegou à idade adulta e fez dos seus dois filhos mais novos (Manuel e Domingos Florentino) frades.

Domingos Florentino da Silva nunca terá tido vocação religiosa de nenhuma espécie. Simpatizante do liberalismo foi, desde muito cedo, uma enorme fonte de problemas para os seus pais. Ainda a Guerra Civil que opunha liberais e absolutistas não tinha terminado e já Frei Domingos recebia ordem de expulsão de Guimarães (e reclusão no convento onde professava em Coimbra) por pregar os ideais liberais. Parecia mais talhado para a política do que para o sacerdócio...

Finda a guerra regressou a Guimarães onde foi causador de enormes distúrbios. Em 1836 aderiu à Revolução de Setembro e foi seu acérrimo defensor. Foi pela defesa incondicional dos valores setembristas que se tornou conhecido em Guimarães. De acordo com um cronista da época Frei Domingos “fez-se notável em todas as eleições e com especiosidade na última eleição de Deputados (a 26 de Agosto de 1838) e na última eleição da Câmara e administrador do concelho, chegando a reunir muitos votos para administrador indo na lista dos 5 para o Governo. Não andava de noite, senão carregado de armas e poucas eram as desordens que haviam na vila em que não entrasse. Finalmente era um homem que não tinha qualidade alguma boa”. Nas referidas eleições chegou mesmo a sublevar o Regimentode Infantaria 18, que se encontrava na Praça da Oliveira na altura da contagem dos votos. Frei Domingos entrou na praça com uma clavina numa mão e uma espada na outra e gritou: “leva arriba! Morram os traidores” e logo os soldados do 18 começaram a espancar os cidadãos e, de seguida, os boletins de voto foram queimados.

Para além destes episódios relacionados com a política, Frei Domingos foi também um homem de farras e de amores...Fez parte da Associação Escolástica Vimaranense (Nicolinas) e tomou-se de amores por D. Maria Júlia Vaz Vieira de Melo e Nápoles (filha do Fidalgo do Toural), que "raptou" da casa de seus pais e de quem teve uma filha, D. Maria Antónia Vaz Vieira.

Na noite de 18 para 19 de Julho de 1839, estando perto das Taipas, possivelmente na quinta de seus pais, Frei Domingos meteu-se numa festa onde terá agredido diversas pessoas. Um ferreiro, armado de uma clavina, deu-lhe um tiro no peito, matando-o de imediato. Ao que parece apareceu “morto em ceroulas, e assim esteve todo o dia até ao seguinte em que a justiça foi levantá-lo, estando tão descomposto que causava horror a quem o via. Estava em ceroulas porque assim tinha saído de casa, quando tinha vindo bater nos da festa e tirar-lhes umas moças que eles levavam. O sítio aonde ele apareceu morto foi na Deveza, junto as casas do José Leite e por esse sítio foi aonde principiou a desordem, e aonde ele levou o tiro”.  A sua morte causou  grande satisfação na Vila de Guimarães onde o povo sabia que “um tal verdugo não podia deixar de ter mais cedo, ou mais tarde um tal fim, e por se verem livres de um tão grande opressor”.

Um jornal do Porto defendeu Frei Domingos, afirmando que a sua morte fora um assassinato político e que grandes interesses estavam em jogo. Mas, para a história de Guimarães, Domingos Florentino da Silva será sempre “O Facínora”.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Mais um livro quinhentista de um autor vimaranense...

(carregar para aumentar)
Ao que tudo indica, este opúsculo terá sido um dos primeiros livros compostos em Guimarães. É da autoria do Padre João do Valle Peixoto (da antiga família dos Valles Peixotos de Guimarães), homem de letras, que, de acordo com o Padre Caldas na sua obra "Guimarães Apontamentos para a sua História",  "foi o primeiro português, que na universidade da Sajpientia em Roma recebeu as insígnias doutorais em jurisprudência civil, sendo considerado na sua época como jurisconsulto consumado". A obra trata de Direito das Obrigações seguido de considerações do autor.

O Doutor Pe. João do Valle Peixoto foi autor de algumas obras jurídicas (bastante raras) sendo possivelmente a mais significativa o seu "Repertório Jurídico" do qual não se conhece nenhum exemplar, sendo apenas citado pelo jurisconsulto vimaranense Manuel Barbosa nas suas "Remissões às Ordenações do Reino". 


Esta edição não consta do levantamento feito por Francisco Leite de Faria na sua obra "Livros Quinhentistas de Autores Vimaranenses". Ao que parece foi composta em Guimarães em 1547 e impresso em Lisboa, na Oficina de German Galharde, em 1549. É um livro raríssimo adquirido em 2006 pela Biblioteca Nacional ao livreiro Pedro de Azevedo .Pode ser consultado on-line aqui





PS: é de referir, a título de curiosidade, que nesta família floresceram alguns escritores e livreiros nomeadamente João Peixoto do Valle (livreiro, nascido em Guimarães em 1680) e  João do Valle Peixoto Rolla (autor do século XVIII).

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Taipas (fim) - uma doce lembrança


No seu período áureo as Taipas foram o destino comum de diversas personalidades de relevo do Portugal de então. Nos jornais da época encontramos diversos nomes ligados às mais diversas áreas da vida pública portuguesa de então que frequentavam as Taipas e que usufruíam dos seus banhos[1].
As propriedades das suas águas termais atraíram às Taipas inúmeras pessoas do pais e do estrangeiro que ali procuravam a cura para os seus males. Passando por vezes longas temporadas nas Taipas, os banhistas desde cedo procuraram uma forma de ocuparem os seus tempos livres. Com os melhoramentos realizados no estabelecimento termal a partir da segunda metade do século XIX, as Taipas conheceram a sua época dourada. Neste período, a afluência de banhistas aumentou e o tipo de oferta para os veraneantes diversificou-se e ganhou em quantidade e em qualidade. Com a perda de qualidade do estabelecimento termal o número de banhistas que procuravam aliar a cura para os seus males a algum conforto e qualidade terá diminuído gradualmente. O mesmo aconteceu com a oferta hoteleira da vila e, supomos, terá acontecido com outros estabelecimentos. Ao longo da segunda metade do século XX, os tempos áureos das Taipas enquanto estância termal iam desaparecendo da memória daqueles que os tinham conhecido. Na imprensa local pode ler-se um ou outro lamento sobre esta matéria. Tudo parecia mudado...
No final do século XX, o brilho dos bailes, convívios, torneios e festividades que outrora tinham animado a estância termal das Taipas já não era mais do que uma doce lembrança.



[1] A título meramente exemplificativo deixamos alguns nomes encontrados em diversos números dos jornais consultados para a elaboração deste trabalho: Camilo Castelo Branco, Ferreira de Castro, Ramalho Ortigão, Francisco Ribeiro Martins da Costa (Francisco Agra),  Conde de Vila Pouca (com casa nas Taipas), General La Cueva (com propriedades nas Taipas), Condes de Margaride, Baronesa de Almargem, António Bernardo Ferreira (filho de Maria Antónia Ferreira, “A Ferreirinha”), Visconde da Trindade, Barão do Valado, Vasco Leão (Deputado), António Alves Carneiro (Deputado), Gaspar Teixeira de Magalhães e Lacerda (Deputado), Francisco Martins Sarmento, Silva Caldas (Professor e Bibliófilo), entre muitos outros.